Qual a ligação entre desejo e necessidade?

Apesar de inicialmente podermos achar que desejo e necessidade são a mesma coisa, existe uma clara diferença entre estes dois conceitos. O desejo é uma espécie de estratégia que temos para satisfazer as nossas necessidades fisiológicas e emocionais.

Exemplo:

  • Eu quero comer um doce. O meu desejo é comer doces mas a minha necessidade pode ser fisiológica (necessidade de me alimentar) ou emocional (necessidade de conforto, de segurança, etc).
  • Eu quero beber café. O meu desejo é beber café mas a minha necessidade pode ser fisiológica (necessidade de me hidratar) ou emocional (necessidade de segurança, de tranquilidade, de conexão comigo, etc).

O mesmo acontece com os nossos filhos.

Exemplo:

  • O meu filho pede um gelado e é hora do jantar. O desejo dele é comer um gelado. No entanto, a necessidade pode ser fisiológica (necessidade de se alimentar) ou emocional (necessidade de regulação, de experiência, etc).

Importante:

Como pais, temos a obrigação de preencher as necessidades dos nossos filhos, sejam elas fisiológicas ou emocionais. Quanto aos desejos, podemos ou não satisfazê-los.

No contexto dos relacionamentos amorosos, desejo e necessidade também estão interligados pois podem existir diversas necessidades que nos levem a sentir desejo por uma determinada pessoa. Assim sendo, podemos olhar para alguém como sendo a solução para aquilo que precisamos, ou seja, como se fosse uma estratégia para as nossas necessidades. Porém, também existem situações em que achamos que estamos a seguir a melhor estratégia, mas às vezes a paixão é tão forte que não nos permite ver com clareza qual é realmente o caminho mais saudável e sustentável.

Quando nos apaixonamos por alguém é como se fosse uma espécie de vício neurológico. Enquanto estamos apaixonados, parece que a ligação com aquela pessoa satisfaz todas as nossas necessidades. Se essa ligação for uma estratégia saudável, ecológica e sustentável para nós e para o outro, então é uma estratégia para manter. Porém, se o outro não estiver interessado, se nos fizer mal, se for abusivo de alguma forma, claramente não será uma estratégia ecológica nem sustentável para nós mantermos.

Quando conseguimos olhar para as coisas como uma estratégia, torna-se mais fácil quebrar a ligação quando a estratégia não é saudável nem sustentável de maneira a procurarmos melhores formas de satisfazer as nossas necessidades.

Gabor Maté, um médico canadiano, trabalhou em contextos de dependência. A pergunta que ele costumava e costuma fazer às pessoas viciadas em alguma substância, no jogo, no sexo, etc. é: O que é que isso te dá? O que é que esta droga ou este comportamento te dá? Ou seja, que necessidades é que estás a preencher através deste vício?

Essa pergunta é poderosa em termos de autoconhecimento, pois quando nos focamos na necessidade, podemos explorar outras formas de satisfazer essa mesma necessidade.

Exemplo:

Se eu digo “Eu estou apaixonado por esta pessoa, eu desejo esta pessoa”. Sabendo que há necessidades por detrás desse desejo, eu posso perceber que talvez tenha uma necessidade de experiência, de conexão, de reconhecimento, de segurança, etc. Se a minha necessidade for de experiência, posso refletir sobre que outras estratégias eu posso utilizar para preencher a minha necessidade de experiência que seja mais ecológica e sustentável? Posso descobrir que para além dessa pessoa, há outras pessoas; posso perceber que pedido eu preciso fazer a essa pessoa para ela me ajudar melhor a satisfazer a minha necessidade de experiência, etc.

Nem sempre as estratégias que utilizamos ou os desejos que temos são os mais saudáveis e ecológicos, ou seja, nem sempre nos fazem realmente bem. E por detrás dos nossos desejos temos as nossas necessidades, sendo estas o elemento principal da equação. Nós agimos através de estratégias que definimos para satisfazer as nossas necessidades. Assim sendo, e tendo a atenção focada no que necessitamos, conseguimos mais facilmente perceber se a estratégia utilizada é a mais saudável e sustentável, ou se estamos apenas a satisfazer o nosso desejo.

“Na realidade, aquilo que tu precisas não é de satisfazer o desejo, o que tu precisas é de preencher a necessidade.”

Pedro Vieira

Os desejos fazem sentido

Quando falamos em necessidades humanas (fisiológicas e emocionais), é mais fácil elas serem compreendidas e aceites por todos. Quando falamos em desejo, é mais fácil isso ser encarado como um sinal de fraqueza mental (ceder ao desejo) e termos tendência a querer punir o desejo:

Exemplo:

  • “Ai queres ficar na cama, é?”
  • “Lá estou eu outra vez a querer comer pizza!”
  • Estou numa relação romântica e sinto desejo por outras pessoas. Vou me punir por isso.

Os desejos em si não são estúpidos. Podem não ser a melhor estratégia, mas fazem sempre sentido mediante as necessidades que estão a satisfazer. Eles não existem sem a necessidade. Se não houvesse uma necessidade, eles não surgiriam por si só.

Por isso é que uma pessoa pode dizer que deseja algo e outra pessoa pode dizer que não tem nenhum desejo por isso, pois isso não preenche nenhuma das suas necessidades.

Exemplo:

Eu posso ter neste momento uma necessidade emocional de regulação e o desejo de querer comer chocolate e outra pessoa pode não estar a sentir fome e não ter nenhuma necessidade emocional ligada à comida, pelo que nem sequer se vai lembrar de querer comer um chocolate.

Não se trata então de nos libertarmos dos nossos desejos mas sim de compreendê-los. Os desejos vão continuar a surgir pois o nosso sistema está continuamente a formular estratégias para satisfazer necessidades, a nossa neurologia está desenhada para isso. Ganhar consciência disso permite-nos compreender os nossos desejos, sabendo que não precisamos de ir atrás de todos. Desta forma, podemos até aceitá-los e conviver melhor com eles. E podemos pensar em estratégias diferentes, mais ecológicas e sustentáveis, para satisfazer as necessidades que estão por detrás.

Ao fazer a distinção entre desejo e necessidade, conseguimos tornar as coisas mais práticas, ser mais gentis connosco e com os outros quando surgem certos desejos, pois começamos a compreendê-los melhor. Faz sentido termos os desejos que temos, o que não quer dizer que vamos sempre concretizá-los.

Exemplo:

  • Estou neste momento a sentir desejo de comer um gelado. Faz sentido eu querer um gelado agora, o que não quer dizer que vou comê-lo. Que necessidade está em causa e que tipo de estratégia posso usar em vez deste primeiro movimento que surgiu?
  • Estou cheia de sede, tenho coca-cola e água, e se calhar o primeiro movimento é coca-cola. Mas se eu refletir na necessidade, posso perceber que a minha necessidade é hidratar-me e que a água é uma estratégia melhor. Da mesma forma, posso perceber que a minha necessidade é de energia, o que me leva a escolher a coca-cola.
  • Tenho o desejo de progredir no desporto que pratico e agora treino durante muitas horas. Isso preenche a minha necessidade de reconhecimento e segurança, mas ao mesmo tempo, por causa disso, estou menos conectado com a minha família porque passo muito tempo fora de casa a praticar desporto. Ganhar consciência deste processo ajuda-me a conectar-me com as minhas necessidades de forma a fazer uma escolha mais consciente, sem me deixar ir automaticamente atrás dos meus desejos.

Dicas práticas

Lembra-te que existem 3 formas de satisfazer necessidades:

  • Podes satisfazê-las sozinho;
  • Podes satisfazê-las através de outras pessoas (também através de pedidos claros e específicos feitos a essas pessoas);
  • Podes satisfazê-las contribuindo para a satisfação das necessidades de outras pessoas.

Nos teus relacionamentos, podes conversar sobre desejo e necessidade (numa discussão em família, no local de trabalho, numa relação romântica, etc). É uma forma de encontrarem novos pontos de encontro, de trazer clareza sobre aquilo que desejam e sobre o que realmente necessitam, pois cada um de nós tem uma referência interna sobre o que são as necessidades humanas.

Exemplo:

Todos temos uma referência interna sobre o que é a necessidade de (não) sentir-se visto, (não) sentir-se conectado, (não) seguro, etc. Temos experiências pessoais que nos ajudam a saber o que significam essas necessidades.

Em vez de dizer: “Eu queria que tivesses feito o almoço e não fizeste!”, posso falar sobre as minhas necessidades para tornar a comunicação mais eficaz.

Para te orientar nas tuas reflexões, podes seguir este passo-a-passo:

  • Quando sentires que queres alguma coisa, que desejas alguma coisa, investiga sobre as necessidades que estão por detrás desse querer, desse desejo.
  • Quão saudável e ecológica é a estratégia para satisfazer essa(s) necessidade(s)? 
  • Se a estratégia não for saudável, ecológica e sustentável, então reflete sobre que estratégias/desejos alternativos podes ter para satisfazer essa(s) mesmas necessidade(s).

“O desejo em si é uma espécie de estratégia que temos para satisfazer necessidades. Eu acredito que por detrás de qualquer desejo existem necessidades, mas por detrás das necessidades, não existem desejos.”

Mia